São três, e aqui estão para que possam ser apreciados.

Capítulo I
O
ambiente era relaxante na sala de estar de um apartamento cómodo e requintado à
beira do metro de Odivelas. O manto superior, carregado de cinzento, que
fazia de Lisboa sua refém e o vento que soprava agreste nas suas ruas,
desencorajavam qualquer intenção de sair para passear. Assim se manifestava
aquele inverno, quase a pique.
Na televisão, o filme «Janela Indiscreta»
de Hitchcock tinha chegado ao intervalo. O juiz Álvaro Neves levantou-se
preguiçosamente e dirigiu-se à janela da sala para observar a tempestade que,
naquela tarde invernosa de domingo, uivava pela cidade como um lobo perdido.
Por entre as pingas da chuva nas vidraças,
o juiz viu a rua sem vivalma. Subitamente, surgiu um vulto ao virar da esquina,
fustigado pela tempestade, numa luta feroz contra o vento que parecia tudo
fazer para o impedir de avançar. Julgou, claro, tratar-se de alguém a tentar
fugir do temporal. Mas depressa percebeu que, na verdade, fosse quem fosse,
estava a ser perseguido por um outro vulto, de gabardina e chapéu, que se
aproximava de modo ameaçador.
Na rua deserta, os dois homens iniciaram
uma breve mas feroz luta. Tudo levava a crer tratar-se de um assalto, daqueles
que tantas vezes se ouve falar na televisão, mas que raramente se vê.
«– Onde irá parar esta sociedade?» – pensou
o juiz. Havia no seu rosto um certo ar de resignação impotente. Com certeza que
não iria ser ele o herói que enfrentaria a tempestade para apanhar o ladrão.
Esse era o trabalho da polícia. A ele cabia-lhe julgar.
Estava o juiz perdido nestes pensamentos,
quando percebeu que, afinal, o suposto ladrão não roubara nada. O certo é que
desapareceu a correr pelas escadas de acesso ao metro, deixando atrás de si a
vítima aparentemente morta!
Desta vez, Álvaro não fez uma expressão
resignada, pelo contrário, invadiu-o um sentimento de altruísmo. Como juiz, mas
principalmente como cidadão, não podia ficar indiferente ao corpo ali estendido
debaixo da chuva, mesmo em frente à porta do seu prédio.
E, enquanto na televisão o ator continuava
a observar a rua pela janela, o juiz, abriu a porta e desceu as escadas a
correr, sem sequer se lembrar de que havia elevador. Saiu para a rua e
aproximou-se do corpo inerte. Nesse momento, a chuva redobrou de intensidade e
o vento levantou-lhe as abas do robe. Sem pensar duas vezes, o juiz agarrou no
homem e arrastou-o pesadamente para o interior do prédio.
Apesar de não ser médico, tinha algumas
noções de primeiros socorros que lhe ficaram ainda do já distante tempo de
juventude em que fora escuteiro. E bastou um breve toque no pescoço do
desconhecido para perceber que, pelo menos, estava vivo.
Chamou o elevador e arrastou o corpo do
homem para o interior da cabina. O elevador subiu até ao terceiro andar e
voltou a arrastar o corpo para dentro do seu requintado apartamento, cuja porta
deixara aberta com a pressa. Apesar de vivo, o desconhecido continuava
desmaiado. Por isso, a primeira coisa em que pensou foi chamar uma ambulância.
Estava à procura do telemóvel, quando o homem acordou.
– Onde estou? – perguntou o desconhecido
com voz fraca, como se tivesse despertado de um pesadelo.
Ao ouvir o homem, Álvaro esqueceu o
telemóvel e dirigiu-se rapidamente para ele.
– Alguém o atacou aqui mesmo em frente,
deixando-o estendido na rua. Vi tudo pela janela e trouxe-o para minha casa.
Vou agora ligar para a ambulância. Como se chama?
– Não me lembro! – respondeu o
desconhecido.
– Não se lembra do seu nome? – espantou-se
o juiz.
– Não. Nem do meu nome, nem de nada
relativo ao meu passado! – voltou a responder o homem, esfregando o braço
esquerdo, como se estivesse dorido. Na televisão, o ator observava pela janela
o crime a ser cometido. Foi então que Álvaro reparou numa marca de picada de
agulha no braço do homem.
– Parece-me que alguém o atacou só para lhe
dar uma injeção e…
– Sim! – interrompeu o homem – É a única
coisa de que me lembro!
– Provavelmente com alguma substância que
lhe provocou essa amnésia! – acrescentou o juiz. E depois, como se falasse
consigo mesmo, perguntou – A questão é, porquê?
Lá fora, a tempestade aumentava. A chuva
batia agora com tanta força contra as vidraças, que mais parecia uma criatura
desesperada por entrar.
O homem pediu que o deixasse passar ali a
noite. A curiosidade perante este caso insólito, fez com que o juiz, embora apreensivo,
acedesse ao pedido do desconhecido, dizendo que no dia seguinte teria mesmo de
o levar ao hospital.
E enquanto na televisão o criminoso era
apanhado e a palavra «fim» surgia a meio do ecrã, o desconhecido voltou a
adormecer. Sentado no cadeirão em frente ao televisor, o juiz olhou para o
homem sem saber o que pensar.
O que ele também não sabia era que, lá
fora, por entre a chuva furiosa e os uivos do vento, o estranho vulto da
gabardina e chapéu, rondava o prédio como um lobo a sua presa.
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Capítulo III
A Europa
acordara de luto.
Na madrugada
do décimo sexto dia de dezembro, uma bomba de pequena potência explodira no
coração da cidade de Hamburgo, no norte da Alemanha, a segunda maior em termos
populacionais.
É a partir daí que acompanhamos a vida do soldado Joseph, um jovem alemão, que sobressai
no meio de tantos outros soldados, pois era rápido, ágil e bastante forte. Tinha-se
juntado ao exército recentemente.
Ele vivia num
mundo violento, sangrento e dominado por homens. Depois da explosão em
Hamburgo, alguns soldados foram chamados para ajudar os feridos que tinham
sofrido com a bomba e foi quando Joseph entrou numa igreja onde ouviu as duras palavras de um padre: " O Senhor
fez-nos à sua imagem, mas não nos deu o seu poder. Pai, eu duvido do teu amor!"
O padre ferido
foi logo levado para a enfermaria, bem como outras pessoas que aí se
encontravam.
O soldado ficou pensativo, ele nunca fora
chamado para ajudar as pessoas, pois ele era um soldado e um soldado combate em guerras. Todo o glamour que tinha ouvido dos seus
superiores era falsa, ninguém sabe porque luta, os soldados eram apenas
fantoches nas mãos dos ricos que viam sentido na guerra.
Tanta
violência, sempre a obedecer, nunca
tinha questionado o porquê da guerra. Que ironia ouvir um padre a perder a sua fé!
Estas palavras fizeram o Joseph pensar. Não se sentia parte
daquele mundo, um mundo onde todos
pareciam alheios. Pessoas que não se conheciam, que não sabiam
o nome umas das outras e que não tinham motivos para se odiar, lutavam entre
si... Não há motivos para que tanta gente se encontre num local com o único
propósito de derramar sangue.
A melhor
forma que encontrou foi afastar-se te todo aquele cenário. Saiu da Alemanha em direção ao norte em busca
de refúgio num local onde as armas não fossem necessárias e onde o diálogo
fosse a primeira opção.
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Capítulo
IV
Um
pequeno debate, porém, com grande importância, iniciara-se na comunidade,
relativamente à iniciativa solidária que a Mesquita Central de Lisboa se
preparava para realizar. Estava marcado para o dia vinte e cinco de Dezembro,
data de muito relevo, para os
cristãos: o Dia de Natal.
Na maior parte dos países muçulmanos, esta
data é irrelevante e, por isso, alguns membros da administração opuseram-se à
proposta que teria sido feita argumentando que não fazia sentido celebrarem
esta data de forma cristã. Mas, com a decisão final do imã (Conselheiro
Religioso), determinou-se que seria realizado um “banquete” solidário para
todos aqueles que não tivessem condições financeiras, família ou mesmo um teto
para passar o dia natalício, fossem muçulmanos ou não.
Chegado
o dia 25 de dezembro de 2016, devido à proximidade da estação de metro da Praça
de Espanha, a Mesquita acolheu os sem-abrigo que por ali vivem, juntamente com
várias famílias carenciadas, principalmente as muçulmanas que, mesmo tendo um
sítio para morar, viviam com algumas dificuldades.
No início do convívio, era notória uma certa
desconfiança entre vários grupos. As famílias carenciadas sentavam-se olhando
com um desprezo disfarçado para os sem-abrigo; estes, sendo maioritariamente
católicos, entraram na Mesquita receosos, afastavam-se dos muçulmanos e estes,
por sua vez, demonstravam também alguma incerteza quanto às restantes pessoas,
cochichando entre si.
A
Fundação Calouste Gulbenkian, que também se encontra relativamente perto desta
Mesquita e que procura sempre melhorar a qualidade de vida de cada um,
participou desta iniciativa promovendo várias atividades ao longo do dia, como
a distribuição de pequenas lembranças e investir na capacitação das pessoas. Foram
realizados jogos teatrais improvisados, onde cada um podia representar o papel
com que sonhasse, desempenhar a função que quisesse ou ter o estatuto social
que bem entendesse.
As
atividades começaram por volta das nove horas e foram chegando cada vez mais
pessoas. Ao meio dia e meio já se notava outro clima, mais descontraído. Os
convivas conversavam alegremente entre si, esquecendo as diferenças que os
separavam e antecipando um bom ambiente para o tão esperado banquete.
A
iniciativa excedeu as expectativas de todos e tornou-se num dia memorável, não
só pela riqueza das experiências vividas como pelas lições adquiridas; conheceram
diversas culturas, respeitaram as crenças e costumes diferentes dos seus e
aprenderam que, apesar das origens distintas, todos têm direito à dignidade e
ao respeito. E, com a tolerância, foi possível fazer com que este dia fosse um
dia especial para todos.
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